sábado, 14 de outubro de 2017

DANO MORAL E JUSTIÇA: tem solução? - parte IX

               Nos posts anteriores, foram feitas análises de casos que a jurisprudência é pacífica em configurar os danos morais quando a violação a direitos de personalidade narrada pelos consumidores (ou autores do processo judicial) resta configurada. Por terem sido pesquisados vários processos, percebeu-se que em diversos casos a empresa que figura no polo passivo da demanda (ré) é a mesma empresa em vários processos. Portanto, ainda que haja uma quantidade elevada de ações judiciais, os valores fixados a título de danos morais não estão cumprindo as funções punitiva e repressiva, devendo ser adotado algum método de aumento do valor em casos de reincidência, como ocorre no processo administrativo ou no próprio processo penal.
               Se a conduta já está caracterizada como indevida, cabe à empresa deixar de fazê-la. Mas isto não ocorre. Há curioso caso que ocorreu na década de 60, conhecido por "Ford Pinto Case". Houve uma controvérsia judicial em que a fabricante de automóveis Ford Motor Company foi condenada a pagar 125 milhões de dólares em razão de um acidente ocorrido em maio de 1972, envolvendo o veículo modelo Pinto que pegou fogo após uma colisão traseira, provocando a morte de Lily Gray e ferindo gravemente Richard Grimshaw. Após recursos, o valor foi reduzido para 3,5 milhões de dólares.
                   Em 10 de agosto de 1978, seis meses depois do veredito deste primeiro caso, outro veículo do mesmo modelo se envolveu em colisão semelhante, que também levou ao incêndio do automóvel e à morte de três mulheres. Ao longo das lides, apurou-se que o design do Ford Pinto favorecia a ocorrência de incêndios após colisões traseiras, em face do posicionamento do tanque de gasolina.
               A Ford desenvolveu projetos com vistas à redução do risco desses eventos ocorrerem, e apurou que o custo de implantação das mudanças seria de 11 dólares por veículo. Entretanto, depois de uma análise de “custo-benefício” dessas mudanças, a fabricante de automóveis optou por não aplicar tais melhoramentos nos veículos, sob o argumento de que gastaria mais com a mudança dos carros do que se pagasse as indenizações havidas em função dos eventos de responsabilidade civil daí oriundos.
               O fundamento dos cálculos da Ford era o de que, proporcionalmente, o design defeituoso poderia levar a 180 mortes, 180 ferimentos por queimaduras e 2.100 veículos destruídos. Atribuindo-se o valor de 200 mil dólares para cada morte, 67 mil dólares por ferido e 700 dólares por veículo destruído, chega-se ao total de 49,5 milhões de dólares pelo custo do risco de responsabilidade civil assumido com a manutenção do design defeituoso. Tratar-se-ia de um custo bem inferior aos 137 milhões de dólares que seriam gastos na adaptação de 11 milhões de carros e 1,5 milhão de camionetes (a 11 dólares por unidade) que adotavam aquele design.
               Portanto, como a fabricante já sabia o valor que iria pagar para cada dano causado, deixou de fazer as melhorias no veículo e aguardou a ocorrência dos danos.
                Neste cenário, conforme ficou evidente neste precedente da Ford, é possível verificar que as empresas que causam danos aos consumidores continuam com a mesma política, sendo que a condenação em danos morais não tem sido suficiente para alterar a maneira como o serviço é prestado. Portanto, é certo que em casos de reincidência, a conduta deveria ser punida de uma maneira mais severa a fim de concretizar o caráter persuasório da reparação.
               Assim, tendo em vista que evitar enriquecimento sem causa à parte prejudicada é um dos critérios a ser analisado pelo juiz na hora de fixar um valor justo para reparação por danos morais, uma solução para alterar o quadro de descaso adotado pelas empresas em relação aos seus clientes é o dano moral coletivo.

               Como já foi destacado anteriormente neste estudo, há tutela dos interesses difusos e coletivos prevista no art. 81 do CDC, in verbis:
           "Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
               Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
      I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
      II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
        III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."
               Portanto, o dano moral coletivo configura-se quando o dano ultrapassa a esfera de apenas um indivíduo e atinge toda uma comunidade, e decorrem quando o bem jurídico tutelado é do interesse de todos. Por isso, é possível caracterizar danos morais coletivos quando há responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, aos consumidores, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio público e social.
               O instrumento a ser utilizado para garantia deste direito de reparação é a ação civil pública, regulamentada pela Lei 7.347/85. O art. 1º desta Lei prevê expressamente que finalidade é a reparação aos danos morais e materiais. Com efeito, a jurisprudência brasileira tem-se dividido, ora admitindo ora se posicionando pela inadmissibilidade da reparação por danos morais coletivos no sistema jurídico vigente. 

               Como precedente acerca deste tema, é possível destacar o caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 11/06/2007, em que a TVSBT – Canal 4 de São Paulo S/A foi condenada ao pagamento de reparação por danos morais coletivos em razão da exibição no programa “Domingo Legal”, sem aviso prévio quanto ao conteúdo, de reportagem abordando manifestação de inúmeras pessoas nuas no Parque do Ibirapuera. No referido julgado, entendeu o E. TJSP que:
"…está expresso na Lei 7.347/85 que a ação civil pública tem como uma de suas finalidades a reparação por danos morais e materiais causados a quaisquer dos valores transindividuais de que cuida a Lei. (…) a violação a direitos difusos não é, via de regra, patrimonial, mas sim moral, por atuar na esfera das convicções e impressões subjetivas de um número indeterminável de pessoas acerca dos fatos, bem como estas pessoas reagem a esses fatos."
               Entendimento em sentido oposto foi adotado pelo C. Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp nº 971.844/RS, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 12/2/2010, em que a ação civil pública objetivava a reabertura de postos de atendimento de serviço de telefonia. O Relator ressaltou que não existe possibilidade de dano moral coletivo, uma vez que não parece ser compatível com o dano moral a ideia da transindividualidade da lesão. No mesmo sentido foram julgados os REsp nº 598.281/MG, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 1º/6/2006 e REsp nº 821.891/RS, Relator Ministro Luiz Fux, in DJe 12/5/2008.
            Contudo, ainda que haja resistência por parte da jurisprudência para reconhecer a possibilidade de reparação por danos morais coletivos, este instituto é ideal para acabar com o desrespeito ao consumidor, ou, pelo menos, diminuir o número de ações que têm por objeto os mesmos fatos e as mesmas inobservâncias das normas protecionistas.
               Lembrando que o art. 5º da Lei 7.347/85 prevê como legitimados para pleitear a reparação por danos morais coletivos o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista e a associação que esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano e que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Ademais, não afasta a possibilidade de ajuizar ação popular quando estes órgãos se quedarem inertes.
               Assim, é um instituto jurídico de relevante importância que acaba com a análise “custo-benefício” feita pelas empresas fornecedoras de serviços. O dinheiro da condenação em reparação por danos morais coletivos seria dirigido a um Fundo Especial de Defesa dos Consumidores (que já existe em alguns Estados), o qual forneceria ajuda aos consumidores sem necessidade de judicialização das demandas.
            As condenações em danos morais teriam valores mais significativos, e atingiriam o patrimônio direto das grandes empresas, forçando-as a adotarem medidas mais eficientes para lidar com seus clientes. Desta forma, a condenação atingiria seu caráter pedagógico. Percebe-se que este entendimento é adotado no direito anglo-americano, o qual prevê a reparação por danos morais através dos punitives damages. Nehemias Domingos de Melo (2005, p. 365), defensor da aplicação dos “danos punitivos”, explica que “o peso da indenização no ‘bolso’ do infrator, é, a nosso sentir, a resposta mais adequada que o ordenamento jurídico pátrio pode oferecer para garantir que não sejam ofendidos diuturnamente os bens atinentes à personalidade do ser humano”.
               Portanto, a adoção do sistema de indenizações punitivas em caso de danos morais coletivos conseguiria observar todos os critérios já descritos para a fixação do quantum, e a condenação atingiria sua tríplice função (reparadora, punitivo-pedagógica e preventiva). Frise-se que este sistema seria ideal tão somente para as relações de consumo.
               No caso de análise de danos morais quando a natureza da relação entre as partes é paritária, note-se que o próprio sistema recursal já possui um olhar cauteloso aos processos, sendo desnecessária a rigorosidade da condenação, haja vista que a hipótese de reincidência é baixa. Nestes casos, o valor fixado atinge seus objetivos, não havendo motivo para atuação estatal por meio da ação civil pública. A própria ação judicial coíbe casos futuros. 
               Então a resposta à pergunta do título é: sim, tem solução! Precisa da mobilização dos órgãos fiscalizadores, de associações de consumidores, da própria sociedade, mas tem solução sim. Não é porque vai dar trabalho fazer que se deve deixar de fazer. A mudança precisa acontecer, e eu tenho a esperança que, logo, logo, ela (a mudança) vai chegar.

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