Tema indispensável para
qualquer pessoa, a responsabilidade civil é o liame necessário para que haja a
possibilidade de se obrigar alguém a reparar um dano. Falamos sobre o dano
moral nos primeiros posts, mas não
existe reparação de danos se não houver configurada a responsabilidade civil de
alguém. Mas o que é responsabilidade?
Imaginem a seguinte
situação: você está dirigindo seu veículo, observando as normas de trânsito, na
velocidade da via e, antevendo que o semáforo ficará vermelho (está no amarelo
ainda), você reduz a velocidade para obedecer à sinalização. De repente, você escuta
um barulho enorme e percebe que o veículo que andava atrás colidiu com seu veículo.
A primeira coisa que você escuta do motorista que colidiu é: “a culpa não foi minha. Foi você que freou
seu carro do nada. A culpa é sua”.
Por mais que você tente explicar que o semáforo ia ficar vermelho, o outro
motorista se mostra inflexível e, após muita discussão, ambos decidem pagar o
seu próprio prejuízo.
Após a análise do caso, se
pergunta: A decisão tomada pelos motoristas foi a melhor para o caso? É a
partir dessas situações cotidianas que discutiremos o que venha a ser
responsabilidade civil.
Como conceito básico que
pode ser apresentado, tem-se que a responsabilidade civil é a medida que obriga alguém a reparar um
dano, seja ele moral ou patrimonial, causado a terceiro em razão de ato ilícito praticado.
Contudo, ocorreu ao longo
do século XX grande revolução em relação a este tema. Para observar esta
evolução, basta analisar que o Código Civil de 1916, em seu art. 159,
consagrava a cláusula geral da responsabilidade civil subjetiva, tendo evoluído
para a responsabilidade civil objetiva fundada, inclusive, em alguns casos, no
risco integral, na qual o próprio nexo causal fica profundamente diluído.
O sistema criado pelo
Código Civil de 1916 revelou-se insuficiente para a solução justa das demandas (seja
em razão do progresso tecnológico, seja por causa do desenvolvimento científico,
seja em razão da explosão demográfica). Diante da mudança no cenário da
sociedade, passou a ser necessário admitir outras hipóteses de responsabilidade
civil não fundada na culpa.
Apesar dessa constatação,
a grande revolução em sede de responsabilidade civil só foi ocorreu com a
Constituição Federal de 1988, na medida em que ela estendeu, em seu art. 37, §
6º, aos prestadores de serviços públicos a responsabilidade objetiva, tal qual
a do Estado. Afinal, se o Estado, quando prestava serviço diretamente,
respondia objetivamente desde a Constituição de 1946, por que o particular,
quando prestava serviços públicos, tal como o Estado, tinha o bônus e respondia
subjetivamente?
Após esta extensão da
responsabilidade objetiva feita pela Carta Magna, o “golpe fatal” na
responsabilidade subjetiva veio com o Código de Defesa do Consumidor que, nos
seus arts. 12 e 14, estabeleceu responsabilidade objetiva para todos os
fornecedores de produtos e serviços. Isto ocorreu, principalmente, porque a
complexidade do consumo, da produção, da distribuição em massa, tornou
impossível a prova da culpa. Com o CDC, o art. 159 do CC/16 ficou cada vez mais
reduzido.
Acresce-se, por oportuno,
que, após o CDC, não mais se deveria fazer a divisão da responsabilidade civil
em contratual e extracontratual, mas sim em responsabilidade tradicional e
responsabilidade nas relações de consumo, tão extensa é a área de incidência desta
norma.
Após esta revolução
acerca da responsabilidade civil, percebe-se que o novo Código Civil (de 2002) é
objetivista, pois é um Código que procurou incluir no seu texto, no seu
sistema, tudo aquilo que já havia sido alcançado pela evolução das leis
especiais. Importante mudança neste paradigma trazida pelo CC/02 foi dedicar um
título à responsabilidade civil (Título IX do Primeiro Livro da Parte Especial
– art. 927 a
954). Mas este título não concentra de forma exaustiva todas as questões acerca
da responsabilidade civil, até porque seria impossível reunir num só título
todas as normas relacionadas com a responsabilidade civil, já que tudo acaba em
responsabilidade.
Humberto Theodoro Júnior
(2003, p. 18)[1] afirma
que a responsabilidade civil com o dever de indenizar “é uma obrigação-sanção
que a lei impõe como resultado necessário do comportamento infringente de
preceitos. Ao contrário do ato jurídico lícito, em que o efeito alcançado, para
o direito, é o mesmo procurado pelo agente, no ato jurídico ilícito, o
resultado é o surgimento de uma obrigação que independe da vontade do agente e
que até pode, como de regra acontece, atuar contra sua intenção”. Outra
característica da obrigação de indenizar é ser sucessiva, porque sempre decorre
da violação de uma obrigação anterior estabelecida na lei, no contrato ou na
própria ordem jurídica.
Embora o novo CC/02 seja objetivista,
ele não eliminou a responsabilidade subjetiva. A responsabilidade subjetiva faz
parte da ética, da moral, do sentimento natural de justiça, decorrente do
princípio de que ninguém deve causar dano a outrem. Assim, pode-se não
responder objetivamente por falta de previsão legal, mas, subjetivamente, se
causar dano a outrem, vai ter sempre que responder.
O fato gerador da
responsabilidade civil, da obrigação de indenizar, é o ato ilícito, quer na
subjetiva, quer na objetiva. Há que se fazer uma leitura conjugada do art. 927
com o art. 186, ambos do CC/02. Portanto, o conceito de ato ilícito dado pela
lei (art. 186) é subjetivo, porque tem como elemento integrante a culpa, sendo
esta a cláusula geral da responsabilidade civil subjetiva (conduta culposa,
nexo causal e dano). Tem que ser provada a culpa.
Apesar de mantida a
cláusula geral da responsabilidade subjetiva, o CC/02 consagrou três cláusulas
gerais de responsabilidade objetiva. A primeira delas esta prevista no art.
187, que trata do abuso do direito. A doutrina e a jurisprudência, antes do
CC/02, construíram a teoria do abuso do direito, estabelecendo que aquele que
exercesse o direito fora dos limites, irregularmente, praticava ato ilícito.
Era predominante o entendimento da corrente subjetivista, que afirmava que só
se configuraria o abuso do direito quando alguém, além de exceder os limites do
exercício do seu direito, o fizesse com a intenção de causar dano a alguém.
Entretanto, quando surge
a corrente predominante da responsabilidade objetiva, principalmente na França,
começa-se a conceber também um abuso do direito objetivo, isto é,
independentemente de qualquer finalidade ou intenção de prejudicar. Quanto ao
CC/02, é certo que não há, no art. 187, a menor referência à intencionalidade, ao
fim de causar dano a alguém: basta que se exerça o direito ultrapassando os
limites ali estabelecidos.
A partir da conjugação do
art. 187 com o art. 927, CC/02, tem-se que todo e qualquer direito subjetivo
terá que ser exercido nos limites definidos pelo fim econômico, pela finalidade
social e pela boa-fé.
A boa-fé está prevista no
art. 113 do CC/02 como princípio de interpretação de todos os negócios
jurídicos, no art. 422, CC/02 como fonte de deveres anexos de todo e qualquer
contrato, e no art. 189, CC/02 como limite de exercício de todo e qualquer
direito. A boa-fé passou a ser uma espécie de cinto de segurança de toda a
ordem jurídica.
A segunda cláusula geral
de responsabilidade objetiva está no parágrafo único do art. 927. Cumpre
destacar que esta previsão normativa não afastou a responsabilidade objetiva
nos casos já especificados em outras leis. Assim, quando a atividade
normalmente desenvolvida implique riscos e cause danos, existe a obrigação de
repará-lo independentemente de culpa. Neste parágrafo, “atividade” é a palavra
chave para entender a disposição normativa, sendo entendida como uma conduta
profissional, habitual, economicamente organizada. Também a expressão
“normalmente desenvolvida” acarreta a ideia de habitualidade, de conduta
reiterada, contínua, organizada e profissional. Esta cláusula foi criada na
época dos anos 70, em que a responsabilidade do fornecedor era subjetiva.
A atividade que, por sua
natureza, implicar risco para os direitos de outrem, tem que ter mais uma
atenção quanto à expressão “implicar risco”. Risco é perigo, é probabilidade de
dano. Logo, foi acolhida a Teoria do Risco Criado para configurar a
responsabilidade objetiva prevista neste dispositivo legal. Mas não haverá a
necessidade de alguém indenizar objetivamente pelo simples da atividade
desenvolvida ser de risco. Convém então lembrar que o risco é apenas a teoria
que justifica a responsabilidade objetiva, mas não é seu fato gerador. A
obrigação de indenizar só surge quando alguém viola dever jurídico e causa dano
a outrem.
Não é o risco, portanto,
que por si só gera o dever de indenizar, e sim o dano causado pela violação a
dever jurídico. Quando alguém exerce uma atividade de risco, a lei cria para
ele um dever jurídico específico, que se for violado gera a obrigação de
indenizar, independentemente de culpa. Para aquele que exerce uma atividade
perigosa, a lei impõe o dever de exercê-la com segurança tal que não cause dano
a ninguém. No art. 14 do CDC estabelece a responsabilidade pelo defeito no
serviço. O fornecedor só vai responder objetivamente pelo dano causado em
decorrência do defeito em seu serviço. O que a lei exige é que a atividade
desenvolvida pelo fornecedor seja exercida sem defeito. Ressalta-se que o
serviço é defeituoso quando não oferece a segurança legitimamente esperada ou
esperável, o que deve ser entendido dependendo do caso concreto.
Em conclusão, tem-se que
visualizar impreterivelmente o parágrafo único do art. 927 do CC/02 como a
mesma disciplina jurídica do art. 14 do CDC. Há que se colocar a ressalva
acerca da responsabilidade dos profissionais liberais, que está regulada pelo §
4º do art. 14 do CDC, como sendo subjetiva. O profissional liberal é aquele que
exerce suas atividades por conta própria, e esta mesma exceção é encontrada no
art. 951 do CC/02.
É certo que estas duas
normas são idênticas (parágrafo único do art. 927 do CC/02 e o art. 14 do CDC),
mas cada qual em sua área. Antes do CC/02, não poderia ser aplicada a
responsabilidade objetiva do CDC em situação que não ocorresse relação de
consumo. Logo, abriu o leque da responsabilidade objetiva para qualquer um que
presta um serviço perigoso.
A terceira e última
cláusula geral da responsabilidade objetiva está no art. 931 do CC/02, que
dispõe que os empresários e empresas respondem independentemente de culpa pelos
danos causados pelos produtos postos em circulação. Esta é a responsabilidade
pelo fato do produto prevista no art. 12 do CDC. O produto só pode ser
considerado defeituoso quando não oferecer a segurança legitimamente esperada,
ressalvando também aqui a relatividade da segurança – risco adquirido – sob
pena de se criar uma responsabilidade objetiva fundada no risco integral.
São estas três cláusulas
gerais de responsabilidade objetiva consagrada no novo CC/02, que permite chegar
à conclusão de que ele é um código objetivista. Não obstante a cláusula geral
de responsabilidade subjetiva, as cláusulas de responsabilidade objetiva são
tão amplas e tão abrangentes que, se não forem interpretadas com moderação,
nada sobrará para a responsabilidade subjetiva. Há outras hipóteses previstas
no CC/02 de responsabilidade objetiva, tais como a responsabilidade dos pais em
relação aos filhos menores; a responsabilidade do patrão em relação ao
empregado; a responsabilidade do tutor e do curador em relação ao pipilo e ao
curatelado. Não há mais que se falar em culpa
in elegendo, culpa in custodiendo, culpa in vigilando. O CC/02 criou até a
responsabilidade para o incapaz (art. 928) que será subsidiária.
Com esta ampliação quanto
à responsabilidade civil, o CC/02 traz o desafio aos operados do direito, para
ser interpretado tendo em vista a construção de uma sociedade ética e
solidária. Segundo Mário Moacyr Porto[2], a
lei não esgota o direito, assim como a partitura não esgota a música.
Continue acompanhando o blog. Sabe a situação do acidente de trânsito narrada lá em cima? Só será respondida nos próximos posts.